Nosso Mais Importante Feito Criativo
Porto Alegre, 23 de agosto de 2024.
#blogpost [english below]

O mais difícil e importante feito criativo que uma artista-sem-ter-onde-cair-morta poderá realizar é manter-se economicamente e em atividade poética, enquanto trabalha alienada em outro emprego, além de cuidar de sua saúde existencial. Sim! Dificílima economia vital colocada na ponta do lápis: equilibrar atividade viva com trabalho morto, em uma realidade que tende ao amortecimento, que fraciona e drena qualquer entusiasmo. Tal feito surpreendente pode ocorrer antes ou depois da criatividade de linguagem ou estilística, antes ou depois dos reconhecimentos do próprio meio artístico. Aliás, para quem-não-tem-onde-cair-morto, nenhum reconhecimento do meio artístico garantirá o pleno e duradouro exercício de sua atividade profissional. Por certo, nada impede de tentar o contrário, de ser uma das raridades contadas nos dedos, usadas como anedota estrutural: “veja só como é possível! O problema está na sua incapacidade! Pague por um coach das artes e tudo será diferente”.

Juntar vida prática com vitalidade criativa é o nosso grande desafio, pois as oportunidades não garantem estabilidade, nem contas pagas a médio prazo. É uma rara conquista: quais artistas você conhece que atingiram tamanha façanha? Quantas permanecem vigorosas? Restam profissionais despreocupados com necessidades tão primordiais como alimentação, moradia e saúde básica. Iminência de despejo, filas no SUS e fome não fazem parte do dia-a-dia. A história da arte recente (artistas, críticos, historiadores) parece mais às aventuras de uma aristocracia excêntrica e descolada dos antagonismos de classe, com raras exceções anedóticas e romantizadas. As exceções servem de espetáculo para que o esquema pareça algo possível de participar e humanizado, ao passo que as lavanderias de dinheiro operam sobre um tipo de artefato de valor especulativo, como giram as cifras chiques de poucos objetos artísticos.

Quem passa pela formação universitária, por exemplo, ainda é amansado e conduzido como um cosplay de aristocrata. Para além de tópicos sobre linguagem, história ou mercado dos brilhantes favorecidos, pouco nos dedicamos a confrontar as condições materiais de artistas – porque, inclusive, ainda há pesquisadores/educadores que nunca precisaram de fato ou, com o tempo, deixaram de se preocupar em equilibrar pratos – arte + trabalho + sobrevivência. Adestramento ideológico para manter peças e figuras onde estão.

São detalhes fundamentais que ouvimos falar, mas que, cedo ou tarde, percebemos de maneira diferente, quando colidem com a vida real. Por isso, espero realmente que artistas da classe trabalhadora compreendam isso cada vez mais cedo, antes de chegarem a graus irrespiráveis de precariedade. Nós sempre precisaremos ser criativos com o cotidiano capitalista, mesmo antes de sermos mirabolantes em salas de exposição. Talvez, esteja aqui falando de outro apurado plano ético e estético de fruição das produções artísticas: a perspectiva de nunca mais esquecer de onde uma dedicação artística vem, para quem ou quais assuntos se direciona, quais foram suas condições cotidianas de exercício e quais desafios materiais teve de ultrapassar para que persista vital em nossa realidade embrutecida.

-- Escrito por Elias Maroso.

-

[english version]

Our Most Important Creative Achievement Porto Alegre, August 23, 2024. #blogpost

The most difficult and important creative feat that an artist with nowhere to fall could achieve is to remain economically viable and active in poetry, while working alienated in another job, in addition to taking care of her existential health. Yes! It’s an incredibly difficult vital economy put on the tip of the pencil: balancing live activity with dead work, in a reality that tends toward amortization, which fragments and drains any enthusiasm. Such a surprising feat may occur before or after creativity in language or style, before or after recognition from the art world itself. In fact, for someone with nowhere to fall, no recognition from the art world will guarantee the full and enduring exercise of their professional activity. Certainly, nothing prevents one from trying the opposite, from becoming one of those rare exceptions counted on one’s fingers, used as a structural anecdote: “look how it’s possible! The problem is with your inability! Pay for an art coach and everything will be different.”

Combining practical life with creative vitality is our great challenge, as opportunities do not guarantee stability or bills paid in the medium term. It is a rare achievement: how many artists do you know who have achieved such a feat? How many remain vigorous? There are professionals who are unconcerned with fundamental needs such as food, housing, and basic health care. The threat of eviction, queues at public services, and hunger are not part of their daily lives. Recent art history (artists, critics, historians) seems more like the adventures of an eccentric aristocracy detached from class antagonisms, with rare anecdotal and romanticized exceptions. These exceptions serve as a spectacle to make the system appear something that is possible to participate in and humanized, while money laundering operations revolve around a type of artifact with speculative value, just as the chic figures of a few artistic objects circulate.

Those who go through university education, for example, are still tamed and led like a cosplay of aristocracy. Beyond topics on language, history, or the market of the brilliant few, little effort is made to confront the material conditions of artists – because, indeed, there are still researchers/educators who have never had to or, over time, have stopped worrying about balancing plates – art + work + survival. Ideological conditioning to keep pieces and figures where they are.

These are fundamental details that we hear about, but that, sooner or later, we perceive differently when they collide with real life. Therefore, I truly hope that working-class artists understand this earlier, before reaching unbreathable levels of precariousness. We will always need to be creative with capitalist daily life, even before being imaginative in exhibition halls. Perhaps, I am here talking about another refined ethical and aesthetic plan for enjoying artistic productions: the perspective of never forgetting where an artistic dedication comes from, to whom or what subjects it is directed, what its daily working conditions were, and what material challenges it had to overcome to remain vital in our harsh reality.

-- Written by Elias Maroso.