Texto de Fercho Marquéz-Elul

A obra-pensamento de Elias Maroso
como scattered objects: corrosão, pulsação e dispersão

 

Fercho Marquéz-Elul
Verão pandêmico de 2021

 

A poética de Elias Maroso estabelece um posicionamento claro em relação à imbricação indissociável dos aspectos éticos – as diversas maneiras de se deslocar no mundo de maneira crítica – com as instâncias estéticas – a prevalência de um envolvimento com a imagem de maneira política – para a elaboração, rearticulação dos limites e compartimentos que o mundo contemporâneo tem nos desafiado. Ele estende essa maneira crítica de ocupar os espaços para o lugar da gênese de seu pensamento, em que o pensar deve se estabelecer por um processo experimental que reanima um cuidado reflexivo a respeito dos modos como o pensamento se faz ao ser pensado. Também relativiza, ao deslocar ou inverter, pontos de vista que intermedeiam esse exercício de reflexão para destituí-los de seus lugares de poder.

Nas experimentações de Maroso, então, o pensamento será a fonte primária de embate poético, em que será martelado, desmoldado, depurado, alvejado [1] e, mais do que nunca, ser desnudado da linguagem discursiva que o envolve e protege o pensar, lançando-o a seu grau zero, desnudado como arma ao olhar adestrado. O pensamento então estará sendo questionado como matéria em si mesma, antes de mais nada, e terá sua materialidade manipulada na própria realidade dada com seus elementos materiais prementes. Manipular a materialidade do pensamento dentro da cabeça é o primeiro passo importante para envolver uma mudança exterior, mesmo que isso decorra em uma luta contra o risco de tê-la encapsulada e mantida cativa na própria caixa craniana.

Esta caixa craniana, dada à luz pelo cruzamento entre Atlas e Áxis, contempla finalmente o encapsulamento dos espaços vazios de vértebra a vertebra, ensaiados sempre de maneira arriscadamente única. Encima, a escada de nossa coluna e é a semente não germinada das mais resistentes, cujos processos estão vedados ao seu exterior e que, mesmo internos, cercados por suas paredes tumulares, logram disseminar o pensamento, ainda assim [2]. Não apenas como caixa preta que concentra os segredos dos voos da mente, mas a caixa craniana também se faz caixa transmissora, em que, através de suas paredes, insemina pulsos elétricos para outras partes alienadas do corpo. Sabendo no fundo disso, Elias Maroso avança pretendendo o pensamento externalizado do corpo, dissecado e extraído do conforto da sua casa craniana, um pensamento revelado através de materiais comunicantes, materiais que capturam, concentram e dá prosseguimento ao impulso criador que comunica mais que uma saída, mas uma penetração, um extravasamento que se fragmenta, que se partimenta e se capilariza de maneira dispersiva para o fora interno do real.

A partir disso, cumpre-se ver sempre mais de uma vez, sempre de uma maneira diferente sua produção que se embaralha no espaço da própria vida e ao mesmo tempo embaralha o espaço vital dos nossos processos reflexivos perante uma obra. Cumpre-se também operar criticamente com novas nomenclaturas não como classificação que especializa algum conceito, mas como sinal luminoso que nos possa guiar ao adentrar esse território dispersivo do pensamento posto no real (saído da mente) e, portanto, entropicizado. Um novo, diferente e, portanto, outro pensamento é requerido aqui, um neologismo, uma nova (neo) forma de pensar, de articular o pensamento (logos). Lanço para fora de minha cabeça uma palavra – pensumbrar [3]­ que também é uma ideia. Elias Maroso é um artista que pensumbra, ou seja, que pensa ou reflete uma ideia ou um pensamento no próprio fazer material e concomitantemente, opera, obra, faz ou executa um trabalho a partir de um projeto, de uma inquietação, de suas ruminações reflexivas em prol de obras-pensamentos.

Em suas obras-pensamentos, em suas pensumbras, nessas obras que se pensa a partir do pensamento que se faz pensado, Maroso procede através de três instâncias que se divisam nesta reflexão e que deslindam situações ativas de empreendimento não apenas reflexivo, como também procedimental, comunicativo e dispositivo de sua obra. Procede selecionando materiais com capacidades condutoras ímpares, que jogam com os regimes de transparência e opacidade, luz e sombra e que se estabelecem no mundo através de processos anticáusticos, silenciosamente violentos cujas formas apreendidas são ensaiadas a partir do método corrosivo de transformação química. Capazes de empreender o fio de uma comunicação, não apenas entre as partes que compõem suas obras com elementos dispersos, mas principalmente transmitem infralevemente ondas para o ambiente externo à obra, ao espaço expositivo e que nos atingem, nos comunicam de maneira agudamente muda como um sonar a espera da captação de seu som retornado, de seus impulsos estéticos e políticos e finalmente essas obras cujos elementos constantemente se articulam de maneiras e sentidos diferentes, em que partes transitam de uma obra a outra, gerando novos discursos e funcionando em uma afirmação poética a partir de unidades elementares de sentido, como também em profícuos textos diagramáticos que avançam pela parede, espaço afora ampliando o conceito de ideia.


Corrosão: por um procedimento material

Elias Maroso vem desenvolvendo uma profunda investigação a níveis conceituais de seu pensamento poético que também se confirma em suas experimentações materiais. Envolve-se com materiais com alta capacidade condutora de cargas comunicativas que externalizam e expelem sinais. Tem, com lida diária desses materiais, a fonte de toda uma investigação heurística a respeito de suas capacidades para além de seus usos e funções já esperados. Atua como um hacker, como um quebrador de códigos fechados, de caixas pretas, de caixas cranianas e por consequência, desfaz modos de articular pensamentos e ideias, comportamentos estéticos, revelando com isso, seus mecanismos internos mais do que nunca, para o convite de uma nova reflexão, por um prolongamento da ação ativa de pensar em relação a refundar um novo pensamento depurado de armadilhadas mesmerizantes fornecidas pela torrente de imagens profusas.

Abandonando por ora essa qualidade de quebrador, é necessário pensar sua prática material através do conceito de corrosão, tão presente como procedimento que tanto nos reanima em algumas de suas obras mais inventivas. A investigação crítica desse procedimento tem por objetivo, falar da sua particular presença em algumas obras, para pensar a rachadura, a ferida, o espaço intersticial, a expiração como busca radical de sua teleologia. Os processos corrosivos de Elias Maroso recombinam a gravação dentro da gravura com os processos de subtração dentro da escultura. Promovem sobre o material a retirada do que sobra, esculpindo com luz no que resta a obra-pensamento que falta no mundo.  Aplica sobre a chapa as arestas formadoras de um projeto e alveja os espaços desnudos com a substância que os carcome, que os remorde. Levanta do material a matéria poética constitutiva de seus pensamentos, com objetivo de carcomer as instâncias perpetuadoras do poder da tranquilidade, da perenidade, da clausura a que submetem os espaços.

Em sua obra Diagrama com Três Cismas, o artista apresenta três propostas de rachaduras elevadas por suportes de acrílico transparente fixos na parede. São desenhos corroídos através de processo fotoquímico, compondo três imagens esquemáticas em que diversas linhas irregulares são traçadas de seus centros luminosos para sua periferia, remetendo ao que parece ser a materialização de ondas de um campo magnético que, animadas por seu centro luminoso, abrem-se como uma íris ocular que olha o nosso próprio ato de olhá-las. O artista traça, portanto, de um mesmo centro um conjunto de linhas simétricas e radiais e procede justapondo-as entre si até produzir desenhos esquemáticos, passando posteriormente também a mesclar diferentes desenhos esquemáticos entre si, multiplicando as possiblidades formais do experimento.

Através desse esquema compositivo, em uma mesma região circular foram traçadas duas, três, quatro ou quaisquer conjuntos de linhas idênticas entre si, tendo o centro como ponto de referência. Os desenhos são vistos aqui como cismas pelo detalhe de que ainda hoje são feitos na qualidade de série, sem que atinjam uma composição conclusiva [4].

Esses esquemas estão conectados por fios de cobre, primeiro, a um fragmento luminoso, acima em solitário, que sabemos ser a palavra “saída”, entropicizada, bombardeada ou em ruína, recobrindo com sua presença em desenho o espaço vazio de apresentação. De suas três cismas, saem fios de cobre, conectando-as também a pequenas caixas gradeadas por latão corroído fotoquimicamente em que se perfilam duas frases resultantes desse processo: “encontrar uma saída”, gravada em tipografia Recombinante.ttf, de característica geométrica, criada pelo artista e aberta ao livre uso; e “fora”, gravada em letra cursiva e portanto formalmente orgânica. Seu interior luminoso corresponde à conexão que alimenta com eletricidade esse sistema diagramático através de prendedores metálicos que a mordem, criando tensão. Da pequena caixa com letras geométricas salienta-se um suporte que represa de maneira orgânica esses esquemas cujo centro apresenta um buraco, já a outra pequena caixa com letras orgânicas é suportada por uma forma geométrica surgida por método corrosivo, fazendo perceber as inúmeras recombinações recursivas que Elias Maroso aplica com precisão em suas obras, por meio de cruzamentos e deslocamentos.

Neste diagrama, há a presença do interesse pela não apenas a nível formal, mas, antes de mais nada, conceitual. Maroso transforma o índice luminoso que serviria como ponto de referência e o desgasta restando apenas um lampejo de indicação por uma saída, uma penetração através das disciplinas de conhecimento, do campo da própria arte e dos espaços cativos pela institucionalização para seu mais contundente fora. O artista também propõe esse organismo pulsante como uma coisa que se vê transformada por essas mesmas forças tão compressoras do poder da especialização do conhecimento, das instituições de arte, do disciplinamento dos modos de apresentação. “A energia da negação e o repouso do condicionamento são postos em uma mesma proposição. Seria a domesticação de pulsões contestatórias ou uma iniciativa para revelar os limites da condição expositiva de toda obra de arte?[5], seu trabalho nos inquire sobre esses processos que estão sempre sendo implementados sem descanso, como um aviso de saída prática para um pensamento revelador não apenas desses processos, mas principalmente por um pensamento que se estabelece em um agir.

 Em Furo do Olho, 2019, Elias Maroso dispõe no espaço expositivo do Goethe-Institut de Porto Alegre uma coleção de diferentes elementos, ensaiando a partir de objetos, projeções, impressão, diagramas, luz e iluminação a ação de perfurar com o olhar a parede do próprio espaço. Como contrarresposta a essa situação de embate, a parede se desdobra no espaço ao ser atingida pelo olhar, distorcendo-se em uma gama de formas orgânicas criadoras de um buraco umbilical, bem exibido na impressão serigráfica disposta na parede do espaço. Essa distorção espacial se estabelece a partir da absorção da força de impacto e que se vê convertida, transformada através dessa mesma força em uma membrana que impede o rompimento da parede. Ulteriormente, essa experiência não consegue evitar a formação da concavidade do buraco como marca física de acontecimento realizado em um instante no tempo, nem a quebra da parede e a perfuração física. A presença dessa imagem que diagrama no campo conceitual um bombardeamento ocular e antes de mais nada, mental, pensumbrado, já é eficaz como força sedutora da imagem, ou seja, que possibilita o engajamento do desejo.

Nossa atenção se volta intensivamente para duas projeções do rosto do artista na parede que miram penetrantemente o espaço, nossa presença, nosso olhar. É como se seu olhar varresse com raios X não apenas os ditames físicos do próprio espaço, mas principalmente as forças imateriais que gerenciam sua organização, suas políticas e seus posicionamentos. Intermediando nosso olhar perante as projeções e o olhar penetrante do artista em relação ao espaço que rege nossos comportamentos, luminárias cônicas parecem concomitantemente pontuar as pupilas de Elias Maroso, como se o furassem ou se estabelecem como uma espécie de dispositivo oferecido a quem frui a instalação o acesso ao estado de sua visão, permitindo com que fosse penetrado no espaço interno em que a mesma se forma. São através dessas luminárias cônicas que é possibilitada a projeção do rosto e que se inicia a partir do olho projetado.

Duas luminárias projetam imagens sobre a parede por meio da luz, da sombra e de figuras em anamorfose cônica. Os cones de acetato transparente contêm em sua superfície figuras impressas e deformadas para causar a projeção da imagem sobre a parede pela luz e pela sombra. Como uma representação esquemática da projeção luminosa, que parte de um ponto para se propagar em um campo de abrangência, as pontas dos cones são alinhadas aos olhos das figuras projetadas. Parte do desenho em cobre que alimenta a energia das luminárias baseia-se no diagrama do olho de René Descartes, uma gravura em metal publicada no Tractatus de Homine, de 1664.[6] 

Essas luminárias projetam na parede o rosto do artista através do processo de anamorfose cônica, em que são instaladas películas com seu retrato em preto e branco dentro do dispositivo cônico, dentro do qual uma fonte luminosa se vê canalizada para fora atingindo a parede, reformando nesta projeção bidimensional a imagem deformada conicamente. Maroso exibe em uma impressão bidimensional a imagem cônica de seu rosto em deformação, já que é apenas pela corrosão do estado normal da forma, ou seja, apenas pela recodificação da imagem nos parâmetros específicos de um meio, que a recepção precisa de uma imagem é bem empreendida. O artista ao abrir o dispositivo luminoso que projeta por formas tortas as imagens corretas, quebra qualquer ilusionismo ou mistério ilustrativo do experimento. Apresenta-o nas mais diferentes maneiras – projeção, dispositivo luminoso, esquemas e diagrama – um recurso possível sobre maneiras do pensamento que, disruptivo em sua forma ativa, promove a emissão correta da frequência das ondas eletromagnéticas que facilmente penetram e destroem todo e qualquer obstáculo contra o corpo e o pensamento crítico. Isso começa pelo próprio espaço expositivo e suas instituições dentro das quais sobrevivem, subjugando práticas, conceitos, desejos de arte cativos no poder que se perenizam. Bate com o olhar na parede, como se a estivesse matando a parede a gritos de olhares, como um gesto de confronto cuja contrarresposta protetiva da parede metaforiza a autopreservação dos espaços institucionalizados a qualquer ameaça que ponha em risco o fim da perpetuação de seu domínio.

Afiemos de forma breve nosso olhar e nos aproximemos de uma importante peça que alimenta a obra e que cabe ser aqui divisada. Elias Maroso retoma o estranho diagrama do olho e seu processo de visão presente no Tratado do Homem de René Descartes, de 1964. Na ilustração, Descartes esquematiza a visão pondo os dois olhos em perspectiva distinta em relação ao restante da cabeça – como se esta estivesse deformada ou encurvada – ao traçar setas a partir do órgão ocular em direção a objeto da visão. O artista se apropria dessa imagem, corroendo através de reações químicas que usam a luz, criando, portanto, um desenho surgido daquilo que restou, daquilo que não foi carcomido.

Ligados às mãos – delicadas e dotadas de humor à la art déco – presas pelos polegares e indicadores que ora parecem segurar os prendedores, ora parecem estar sendo impedidos de executar a abertura “da pinça” pelos mesmos, como se estivessem paralisadas pelo poder da carga elétrica, olhos têm seu olhar vetorizado rumo ao dispositivo luminoso. Ali ele conduz a corrente elétrica para a transformação em energia luminar que irá projetar a imagem informada. Esse elemento que pode passar despercebido como apenas um recurso estilístico, na verdade, concentra em um delicado suporte a força que anima todo o organismo poética da obra. Ele aponta para os processos da imagem que surge a partir do resto, de um processo em que a luz escava, roendo, carcomendo essas localidades desnudas, e que oferecidas ao sacrifício da luminosidade, esvaziam-se ao fim do processo. É a concentração através de um comentário heurístico daquilo que é bem premente em sua poética: a inter-relação entre pensar e obrar, em que pensumbrar é também fazer pesar [7], ou seja, obter a depuração do que se precipita como o importante da permanência da imagem como sombra, como linha, como desenho.


Pulsação: por uma comunicação tímica

Rearticulando imagens de seu rosto, tendo seu olhar penetrante projetado na parede ao mesmo tempo que é penetrado pelas luminárias que alimentam a criação da imagem, Elias Maroso leva sua imagem ao perfilamento extremo ao permitir com que esta permaneça acomodada em uma pequena linha que compõe o objeto espiralado. Formando um encadeamento concêntrico de finas linhas de metal que foram poupadas da corrosão e do remordimento, a imagem se equilibra sobre essa superfície devastada pelo processo químico. Na poética do artista, os elementos semânticos estão sempre em trânsito de um dispositivo a outro, como se fluíssem como corrente eletrificada pelo pensamento por diferentes materialidades, encontrando nelas sua habitação, seu dar a entender provisório.  Dispositivos pensumbrados de Maroso também se deslocam constantemente, compondo outros trabalhos e principalmente animando-os através do reestabelecimento de um novo organismo acionado pelo pensamento rearticulado.

Articuladas inicialmente na instalação Você Não Está em Um Lugar Só, de 2019, suas peças encontram-se agora independentes dos demais elementos para compor uma nova situação pensumbrada, intitulada Pulso Espiral. As imagens são articuladas de maneira espelhada, tendo cada disco corroído tratado de uma maneira diferente, um com cor preta e outro somente em cobre. Como seres de um habitat em transição, comunicam-se por meio de pequenos fios de cobre que articulam o estabelecimento de uma tensão elétrica, em que dessa cópula elétrica, empreende a ignição de um sistema de ímãs que promove a vibração das espirais em metal.

O impulso nervoso para acionar o processo de piscar um olho dialetiza a exposição da retina a estados de iluminação e escuridão. Neste trabalho, Elias Maroso reprograma o impulso para que o olho passe não mais a piscar, mas que vibre a partir de um olhar em que não há pálpebras nem córneas que antepare as profundezas da retina, seu lugar de descanso e de aderência. Os impulsos reprogramados fazem a retina bombardeada se desprender do subsolo do olhar, desalojando-se para o exterior da cavidade ocular, penetrando o interior do real e rediagramando sua anatomia a partir da influência dos impulsos elétricos. Toma forma espiralada, sem nenhum anteparo de proteção exceto a materialidade suscetível à corrosão, que não apenas fixa a imagem, mas também a perfila, a sulca, a faz se tornar finamente membranosa, onde fundo e frente, dentro e fora são metabolizados em linhas espirais cheias e vazias, permitindo a coabitação, o trânsito e a vivência nos dois regimes antagônicos de existência e de inexistência. Ao utilizar inventivamente aspectos da física contemporânea, Elias Maroso se vale de alterações quânticas no regime do tempo-espaço e a corrosão paramétrica do binômio dentro e fora para temporalizar questões sobre o estado da arte, especialmente inquietações acerca dos modos, meios e contextos de apresentação artística:

A proposição se baseia justamente em conceber trabalhos que possam coexistir em contextos diferentes de apresentação e exposição artística. Como ponto de partida, imagens [...] que marcam e conectam espaços distantes, encurtam distâncias como buracos quânticos de minhoca. Tanto o movimento de ir para rua quanto o problema de condicionar uma experiência aberta em um ambiente expositivo da arte são considerados. O fato é que esses trabalhos realmente não estão em um lugar só, mas mudam de aspecto e apresentação de acordo com o contexto. A frase que dá título a esse conjunto de trabalhos se repete como um mantra pensativo e luminoso. O mantra forma uns círculos que saem de minha cabeça. Abrem caminhos para ver buracos e furos que levam para fora da clausura. O contrário da clausura não é a pura exterioridade, mas a livre circulação entre o dentro e o fora [8].

Essas peças espiraladas por corrosão que apresentam a imagem perfilada, detêm-nos na presentificação de um dispositivo que escancara o estabelecimento do processo de formação da imagem, acionada por impulsos elétricos, em um sistema ocular atingido por luz mordente cujo globo ocular extravasa para fora, trazendo consigo a retina deformada. O que vemos, portanto, a partir da superfície dos discos espiralados é a parte de trás do olho, ejetada, protuberante e sensível à luz que a corrói, gravando a última imagem vista pelo olho: o próprio rosto do artista, sua imagem especular. Elias Maroso reprograma as funções orgânicas do sistema ocular e seus processos de visão, transformando-o em outro sistema também capaz de prover imagem, mas de uma outra forma. Transforma o sistema ocular, em uma só dobra, em hibridação entre sistemas que excreta impulsos elétricos e linfáticos que depuram a imagem em uma materialização sempre com pouca espessura, mas com densa concentração heurística.

Elias Maroso age como um artista transformador das funções e usos das coisas do mundo, recupera seus usos cotidianos e as engaja numa corrente de novas situações que dilatam as noções de função e uso em prol de uma detenção na experiência artística que seja pensante, que suscite a quem frui uma transformação dos modos de compreender o mundo e de estar atento aos pensamentos que são constantemente transformados.  Com esse trabalho, o artista subverte o núcleo da imagem de uma situação de visão para a sistematização de um dispositivo emissor de sinais vibratórios. De um processo que se dá de dentro para fora, traz a externalização do movimento interno, avessando essa interioridade em uma exterioridade radical: quando avessamos uma bolsa de pano, seu avesso se apresenta, à princípio, sempre deformado, desajeitado, aparentemente disfuncional, mas também literalmente aberto a novas relações com o mundo, com novas tatilidades aos sentidos, como um novo objeto renovado topograficamente que nos encara por sua topologia desejante.

Estimulado pela transformação, pela metamorfose, pela reprogramação, pelo desvio, ou seja, pela avessalidade – essa capacidade poética de comunicar, apresentar, tornar físico com o avesso algo para que quem frua reflita uma vez mais, que experimente aquilo de uma outra forma –, penso novamente Pulso Espiral de uma outra maneira, como um indício dessa articulação que constantemente parte em fuga, que se desloca, que busca tanto abrigos temporários, quanto se reanima no risco, no possível. Pulso Espiral conserva essa capacidade de emissão de vibrações, impulsos lançados em nossa direção para que nos atinjam, para que os experimentemos de uma outra maneira. Penso essa obra como um órgão silencioso e solitário que surge a partir de uma dobra em sua gênese, exatamente de uma espiral. Esse órgão expele, excreta igual a um timo – que hospeda o amadurecimento de células imunológicas de proteção e que em uma parte de seu desenvolvimento também excreta hormônios – cargas particuladas e silentes para o ambiente.

Os trabalhos de Elias Maroso que disponibilizam ao mundo não o objeto em si, mas também a transmissão de um conteúdo silente, vibratório, luminoso, elétrico ou magnético, semântico, no fio dessa crítica fazer-lo-á de maneira paradoxalmente desmaterializada e imperceptível por muita das vezes. Seus objetos estarão pareados com a pessoa visitante em uma instância de transmissor-receptor, contudo, humanamente é impossível conseguir capturar fisiologicamente o conteúdo de seu estímulo. Cabe-nos pensar essa comunicação também dentro de uma ficcionalidade fértil: não que Maroso simule uma transmissão ou um ensejo por comunicação. Não, não há ilusionismos em seu trabalho, o artista o faz verdadeiramente. Na instalação Grifos de Saída, 2019, o conto Um Relatório para uma Academia de Franz Kafka, escrito em 1919 – e que completava naquela data o centenário de existência ainda tão influente para nosso próprio tempo – compõe uma serigrafia sobre papel instalada sobre a parede. Em um rápido olhar, o texto se encontra perdido dentro de um grafismo tipográfico, contudo, com um olhar mais distendido, o que se vê enclausurado é o texto escrito na fonte Recombinante. Elias Maroso não ilusiona quem frui a obra com o uso dessa fonte no texto, mas oblitera não somente o próprio texto, mas principalmente o olhar da pessoa para que esta se aproxime, crie relação, passe a refletir sobre a comunicação lançada pelo artista.

E essa aproximação pode ser estabelecida de uma outra forma se reimaginarmos nosso órgão de recepção dessas experiências desmaterializadas. É preciso articular um novo pensamento incansavelmente para a compreensão de sua obra. Sugiro, portanto, que experienciemos seu trabalho não apenas com o olhar, com a visão, como também com os nossos timos, com esse órgão esquecido e sobrevivente do desaparecimento em nosso corpo, em sua presença indelével na frente do nosso coração. Será através do timo o ponto de recepção das cargas infraleves que Elias Maroso nos envia, quando tomarmos emprestado a partir de sua própria poética a inventividade de pensar essa e tantas outras para que a experiência seja aprofundada, para que os conhecimentos sejam refundados sempre uma vez mais. Sua obra solicita, pois, um pensamento tímico que ritma nossa existência ao nos alimentarmos do inaparente, do não divisado pelo olhar, sendo o timo esse lugar de funcionamento por um sexto sentido, o da experiência sonar.

Em sua poética, é muito contundente a presença de novas delegações de uso, função e de sentido intrínseco aos objetos, compreensões da física experimental são abrigadas fora de seu campo de irradiação, instrumentos que operam em prol da transmissão comunicativa de conteúdo informativo são reapropriados in situ para problematizar o espaço físico da galeria, um conto centenário é rearticulado para retomar as inconsistências críticas do mundo atual. E impregnado dessa consciência transformadora de objetos cuja imagem inicia-se com o sistema ocular em riste e termina com sua reprogramação orgânica em sistema de excreção impulsiva, repenso o timo como órgão sonar que possa captar os ecos desses objetos que tanto transmitem. O timo é uma glândula linfática que vai diminuindo de tamanho à medida que o ser humano cresce. Mesmo quase desaparecida, marca o sistema linfático e endócrino com sua antiga presença e se forma a nível embrionário em posição muito próxima aos sistemas ocular, olfativo e gustativo. E aqui o metamorfoseamos em órgão ecolocalizador que capta aquilo que normalmente não vemos.

Seu trabalho me faz pensar na refundação dos modos de se apoiar também nos sentidos já existentes, acrescentando a essa experiência outros novos e com isso, ficcionalizá-la, confabulando sobre sua própria corporeidade. Apesar de não estabelecer narrativas ou ficções, seu trabalho indubitavelmente articula elementos semânticos díspares, em rearranjos que decantam a imagem esparsa. Acaso seja tensionado seu trabalho para a extração de alguma narrativa, o resultado será aquela polivalente, residente nas incertezas, coabitatante de sentido e do nonsense, passageira do pensamento que encadeira, reflexiva de sensações reverberantes. E essa narrativa desvia as funçõesorgânicas dos nossos sentidos e inscreve o ser humano em uma situação que metamorfoseia seu timo nesta narrativa ensaística.


Hugo Curti, Seres Abissais Sobrevivem – A Mandíbula.
Fotografia em papel salgado, gravura (ponta seca).
Dimensões de 40 cm x 30 cm. Ano de 2014. Fonte: Curti, 2014.

Adentrando em uma condução que refunda o ser humano, nem que seja no momento desta experiência crítica, aproximo de seu trabalho a obra instalativa Seres Abissais Sobrevivem, produzida por Hugo Curti, em 2014. Montando uma ficção, Hugo Curti regressa a tempos imemoriais para tratar do Celacanto, “um peixe que há 400 milhões de anos existe sem nenhuma alteração evolutiva significante, apenas adaptações às mudanças climáticas do planeta Terra” [9]. Apresenta no espaço expositivo um objeto em formato de base de madeira e de seu orifício na parte superior, um fio de couro de 40 metros contém em sua ponta, uma chapa com 1 milímetro de ouro para ser introduzido ou retirado de dentro do orifício pelo público: “Essa é a proporção entre o tempo de existência das duas espécies" [10] e rodeando-o, figuram-se diversos documentos e imagens, compondo seu arquivo de pesquisa fictício do Celacanto, em que narra:

A 400 milhões de anos, antes de qualquer organismo vivo pisar na terra, existia o Celacanto. Acreditava-se que ele fosse um antepassado extinto dos animais terrestres. Antepassado, parece que sim, mas não extinto. Em 25 de dezembro de 1938, foi pescado na costa oriental da África em espécie vivo.Esse peixe que vive em águas profundas e que praticamente não mudou durante todos esses anos é o começo de uma pesquisa sobre evolução, necessidades e a relação de tempo entre os organismos vivos, já que os seres humanos existem a aproximadamente 100 mil anos [11].

Em uma de suas gravuras, entre a profusão de material imagético, Hugo Curti alia fotografia e gravura em prol da captura da imagem do que é a mandíbula do famoso monstro. Não nos parece a captura imagética de suas mandíbulas através da reprogramação conjunta da fotografia que produz imagem do oceano e que capta somente o eco de sua anatomia? E esse eco é recebido pelo dispositivo impressor que o condensa sobre a placa da gravura, sulcando fantasmagoricamente a superfície, corroendo-a, portanto, em prol de uma imagem tímica, que transcende a ideia de mandíbula e revela projetivamente a caixa craniana animal que carrega seus órgãos receptores de sons e ruído.

Deslocando no tempo e no espaço, trago outro relato na forma de um boato dessas criaturas longevas e monstruosas – o Leviatã. Presente na instalação de minha autoria intitulada Leviatã (vértebras de uma baleia tripartida em azul e vermelho) Modular/Tripartir, de 2017, uma coluna vertebral é disposta, retomando as inquietações de Johann Wolfgang von Goethe ao tratar sobre a última vértebra da coluna humana que se metamorfoseia em crânio. O escritor demonstraria que a partir de um pequeno osso no queixo [12] que, saliente, guardaria ali a transformação silente como técnica de atração, de sobrevivência ao alterar as funções de seus órgãos, tecidos e glândulas em estruturas receptivas de som, ecos e ruídos desapercebidos:

Caçado por anos, finalmente indícios do famoso monstro Leviatã foram encontrados na manhã na praia. Infelizmente não o encontraram em bom estado. Na verdade, só os restos ou o que sobrou deles. Restaram apenas da carcaça os ossos. Já não existia nem pele, nem carne que pudesse conter o famoso óleo da baleia Leviatã, que, pelo que se sabe e é de tão boa conhecida fama, ingrediente para o famoso elixir que cura todas as dores. Os arqueólogos também nada puderam o que fazer. Não havia nem o cheiro nauseabundo de morte. Não havia nem espectadores espantados. Só lhes restaram modular uma a uma as vértebras da legendária baleia e triparti-las na boleia de dois caminhões [13].

O óleo tão visado de Leviatã, alojado em uma região de sua caixa craniana, lhe confere não apenas equilíbrio mas permite que o monstro capte o mínimo ser, a mais suave mudança térmica, a pressão mais sutil: seus tecidos em algum momento se transformaram, calcificando em uma cavidade a metamorfose sonar. Sua obra Pulso Espiral é a materialização dessas estratégias metamórficas de empreender uma nova forma de comunicação, nem que suas partes sejam antagonizadas em prol da nova realidade precisa. De uma origem de uso e funções cotidianos, Elias Maroso os reintroduz, então, em uma dinâmica cuja potência que isso pode suscitar não obsolesce tão facilmente, porque é inventivamente engendrada nas corrosões formativas e não aniquiladoras, no extravasamento material não esgotante mas em ejeção tonificadora e antes de mais nada, na armação de um dispositivo que nos propõe a busca curiosa, a elaboração de um novo pensar, de uma nova compreensão não apenas do que está a nossa frente, mas do que sucede em nosso interior. Quer-nos investigando o nosso timo em busca da ativação de seu sentido infraleve e infrafino, localizador dos ecos do que é inapreensível, particularizado, impregnado de dúvidas que ecoam, penetrando eletrizados quaisquer obstáculos a frente.


Dispersão: por uma profileração tópica

Relanço outro voo através de sua obra, introduzindo o pensamento crítico através do caráter de interioridade trabalhada por Elias Maroso nos espaços do pensamento conceitual, da prática poética, da apresentação da obra. Ele, por sua vez, nos promete pensar sobre o que há de interior na realidade externa, o que nisto guarda de envaginado, quais os movimentos que à nós se relançam e o que carreiam consigo. Essa inquietação condensada em suas obras se faz visível quando são dispostas, por exemplo e não apenas, pelo espaço expositivo cuja disposição ali de suas obras, promove um conjunto de rearticulações não apenas a nível visual, já que instaladas solicitam um olhar que se faz generosamente reinventado nessa experiência. Quebra, também a nível espacial, a superfície homogênea da parede, força por seus sentidos poéticos criticamente bem posicionados que o espaço de alguma forma se abra, se advém ferida, que exponha não apenas sua estrutura, seu esqueleto, mas seu próprio flanco institucional.

Ao inserir seu trabalho nos espaços, sub-repticiamente, Maroso não promove uma simples e domesticada entrada de seu trabalho no espaço – do qual querem com que vejamos tudo artisticamente, como um deleite mesmerizado, como uma obra que acontece, que se aventa no seu valor maior de entretenimento –, mas promove uma ocupação, no sentido de restituir para si novos usos críticos e anti-hegemônicos do próprio espaço. Promove a proliferação, como seres microscópicos semelhantes a fungos, bactérias ou vírus, trazendo consigo formas não só experienciáveis aos sentidos, mas também cargas conceituais que são transmitidas para o restante do lugar, diagramadas, expostas, sugeridas.

Suas obras são, a meu ver, como esses objetos nem sempre facilmente capturáveis ao olhar. Como o que tanto querem remover do espaço limpo da arte, livres de sua presença denunciativa, como o mofo que tanto querem ocultar através de sucessivas camadas monótonas de tinta branca, como as traças que silenciosamente carcomem o interior das paredes expositivas e que ocas sustentam o vazio político escondido em todas essas encenações institucionais. Sua obra se faz no espaço, aderindo às superfícies como elemento de poagem, se estabelece em colônias de elementos que se socializam, rearticulando-se, duplicando-se, aprofundando sua ocupação mesma e se alimenta nos interstícios dos ditames arbitrários e das inconsistências institucionais. Faz-se no trânsito do que há de mineral, de quase-vegetal e de animal; no interior de uma prática ética, de uma estética social e de uma teoria política próprias.

No detalhe da Coisa Curva e Vai, de 2017, trabalhada especifi-camente a partir do Porão do Paço Municipal de Porto Alegre para a exposição coletiva Notas de subsolo, seus elementos constituintes adentram o espaço, fixam-se com suas bases na superfície da parede do porão, lançam sinais comunicativos uns com os outros, retransmitem para seu fora um pensamento próprio. Proliferam-se em uma dialética de entrada e saída, aproximação e distanciamento, impulsos e expulsos de seus elementos. Nutrem-se não necessariamente dos espaços em si, mas de suas forças estruturais e de poder. Devoram-nas, capturando para si, para sua estrutura interna obreira essas estratégias de um espaço que quer ocultos seus mecanismos de autopreservação, tornando tudo isso visível através da deglutição e metabolização a que suas obras se propõem quando captam essas mensagens subterrâneas e regressivas que depõem contra qualquer pensamento supostamente progressista e libertador assoberbado pela testa de ferro da superfície institucional – aqui os políticos que se assentam sobre o poder no piso superior do Porão, lá os curadores que se emparedam atrás dos módulos, dos biombos expositivos.

Agindo dentro de suas delicadas existências materiais, provindas de sua criação pela corrosão, pela junção, pela fundição, pela eletrificação, suas obras se dispõem de maneira dispersiva no espaço expositivo, como se para ocupá-lo, ter lidas suas informações ocultas contidas, precisem penetrá-lo a toda velocidade e como um meteorito penetrar essa camada brevemente subfacial (antípoda de tudo que é mais superficial). É na quase-superfície que se dinamizam esse espaço metabolizado, em que se capturam, gerenciando estética e formalmente fragmentos do espaço ocupado que são absorvidos pelas peças de forma materialmente abstrata. Ao verificar as idiossincrasias do espaço a ser exposto, Maroso lança a partir de um sentido tímico uma pergunta sonar que vai para o espaço, que se curva por seus cheios, que abre caminho pelos seus vazios, e que, finalmente, está apto a recepcionar de volta a causa mesma dessa resposta. Essa obra se materializa de uma escuta atenta ao detalhe mínimo, tratando

de um diagrama aberto que toma o pensamento em sua formação como principal assunto. Um fio de cobre eletrifica quatro objetos feitos de acordo com elementos visuais do próprio espaço de exposição. Para dar visibilidade à corrente elétrica que passa por essa instalação, acrescentei espirais que vibram através de pulsações eletromagnéticas [14].

Essa obra que nasce de um exercício inventivo de materialização a partir de uma resposta dada pelo espaço à mente inquieta do artista é uma instância que nasce com a internalização de uma elaboração crítica. E se estabelece neste porão, esse lugar intermediário entre superfície e subterrâneo, recinto intermediário em que sua obra se espacializa tão bem, em que se mo[n][s]t[r]a [monta, mostra] tão verdadeiramente. Sua obra monta sobre o próprio espaço, se fixa, dando ouvido aos ecos de seu interior cavernoso ao mesmo tempo que se dá à mostra numa resposta como lugar outro, re-estabelecido. Não só proliferando a partir do que o espaço físico ali lhe proporciona, mas se desenvolvendo como uma nova localidade crítica dialogante. Aproximo a sua obra que monstrua – ou seja, gesta o ser de um pensamento prático no desenvolvimento poético contíguo entre duas fases metamórficas distintas – uma dialética entre ambientar-se especulativamente dentro de um recinto e deiscer-se [15] propositivamente para o tempo de uma experiência à obra Encostos, de 2017, produzida especificamente para a exposição curada pelo por Ricardo Ayres intitulada Abaixo, no Porão da Bibliotheca Pública Pelotense, em Pelotas/RS.

Fercho Marquéz-Elul, Encostos. Glicerina.
Dimensões de 6 cm x 6 cm x 135 cm (cada). Ano e 2017.
Fotografia de Eliza Nunes. Acervo pessoal.

Guardadas as devidas diferenças em espaços semelhantes – aquilo que fica sob o assento do poder – retomo Encostos por também ser uma aposta objetual que advém de uma escuta dialética no momento de sua instauração e que concomitantemente estabelece seus paradigmas de meia-vida na relação mesma com esse espaço. Ao ser convidado para participar desta exposição, e ter conhecimento sobre o título da mostra e as especificidades do espaço, articulei algumas questões formais que vinha desenvolvendo durante o Mestrado em Artes Visuais com a própria realidade contextual daquele local. O porão, ficando sob a biblioteca pública, guarda uma coleção arqueológica de artefatos indígenas que antes viviam na região, ao mesmo tempo que, seu piso, impermeabilizado, é resguardado de inundações e alagamentos por bombas hidráulicas – já que Pelotas está fundada sobre áreas alagadiças e pantanosas, conhecidas como banhados – que extraem do subsolo água que incansavelmente dali brota. Essa situação destaca a dependência entre um espaço necessitado e bombas que alimentam a manutenção de seu asseio, pois que “se não fossem as bombas que trabalham [ali] sem parar dia e noite, este corredor e as salas que o cercam estariam inundadas” [16].  

Essa situação desafiadora de manter as fundações de uma biblioteca secas da inundação que espreita através de uma máquina que trabalha sem descanso me instigou por seu caráter de absurdismo, por apostarem mais na suposta infalibilidade da máquina, do que em seu provável mau funcionamento. Absurdismo presente na própria característica subterrânea dos porões que encapsula o vazio domiciliar, e, ali naquele espaço expositivo, re-enterra a arte e seus artefatos arqueológicos, reinstituindo uma experiência que se origina nos mortos, em que “nos intervalos dessas relações, habitando as superfícies de variadas texturas, é possível esquecer que estamos abaixo de uma biblioteca, com nossos olhos na altura dos pés dos transeuntes que passam na rua, com os corpos dentro da terra” [17].

Moldei então em resposta duas barras maciças de glicerina, uma horizontal, disposta diretamente sobre o solo e sua análoga vertical apoiada em uma das colunas que sustentam a estrutura do conhecimento municipal. Ambas, feitas de um material extremamente transitório a cada espaço e a suas condições físicas, silentemente passaram a verter sua água interior para a superfície. Sua transpiração era a resposta visivelmente física de uma conversa inadvertida com o espaço, ao mesmo tempo que a deformação sofrida pela barra vertical causada pela gravidade e pela umidade, comentava sobre a falibilidade inesperada de estruturas pensadas como eternas. A água que verte sem cessar do banhado subterrâneo vai silenciosamente carcomendo a estrutura da biblioteca e meus Encostos ali dispostos veiculavam uma materialização desse mesmo processo em andamento:

Dispostas no cimento frio [...] as obras ensaiam modos de existir: [...] encostam-se à estrutura, como um comentário irônico desse esqueleto descoberto. Deitam e repousam sobre o cinza [...] como se aquele lugar lhe fosse nato. Apresentam seus volumes em forma geométricas e disformes, ensaiam a repetição ou alguma outra ordem.

Ambas as obras, portanto, habitam os espaços que as geraram e daí produzem uma presença crítica e inventiva sobre o processo mesmo. Em meus Encostos, o projeto formal geométrico é deformado na transmissão da matéria do seu interior para a superfície, em Coisa Curva e Vai, os elementos permanecem pertinazes no espaço, sendo o resultado guardado de um fazer meticulosamente artesanal e perspicaz e silenciosamente mental. No meu trabalho, sua presença comenta e veicula os processos invisuais em andamento do espaço e na obra de Maroso, seu trabalho articula um trabalhar a partir da organização das forças arquitetônicas e porque não ideológicas do espaço. Meu trabalho se espreguiça sobre o espaço, desbastando-se no tempo sua forma, suas funções, a alta performance como projeto incutido nas máquinas, no dele, sem arreto, persistentemente pulsante, em um vai e vem signatários de presença e de ausência de impulso. Lá, em minha obra, sua temporalidade é a duração, o alongamento de um processo de obra em situação de meia-vida, aqui é a lacuna, o sulco que cava o recuo e avanço de um movimento intervalar em constante interrupção e engendramento.

Pensumbro seu corpo poético como scattered objects, objetos cujos elementos esparsos, espargidos, espalhados se articulam de inúmeras maneiras, tão possível de visualizar, por exemplo, na segunda montagem da instalação Diagrama 88.8, de 2019. Esta obra nos contempla com essa dispersão de elementos que se posicionam no espaço, e empreende um tempo engendrado em síncope, lacunar e fragmentado por uma imagem que se dá por descontinuidade construtiva. Armam sua morada e abrem-se para estabelecimento de uma relação de proximidade com quem frui e de aderência nutritiva com as potências críticas que, invisíveis, preenchem vãos e rachaduras e que nem sempre se deixam permitir qualquer intrusão. Suas instalações fundam conglomerados de elementos artísticos que povoam o espaço, fazendo de seu uso um tempo para a experiência artística. Dispersos não querem dizer desarticulados. Como peças dispostas, irmanam-se umas com as outras, cultivam entre si uma atração mútua já que provêm de uma mesma força criadora cujo movimento poético provoca seu deslocamento espacial e sua aceleração temporal.

Seus elementos semeados no tempo e disseminados no espaço promovem uma inter-relação entre conceitos opostos. Em suas espécies de povoados, suas ilhas de uma urbanidade microscópica não estão subordinadas entre si, mas se coordenam, dissolvendo qualquer hierarquia entre centro e margem, metrópole e subúrbio. Cavilhadas por fios que carreiam o fluxo informacional, cooperam em prol da transmissão, da pulsação. Mesmo constituídos por objetos polidamente finalizados, finamente executados, muitos elementos constituintes provêm da interpolação estabelecida entre o processo em progresso e o informal-orgânico e o processo finalizado e o formal-geométrico. Rearticula a escala do grande e do pequeno: um volume tridimensional proveniente de projeção computacional, avistado em sua Intervenção Nº 4, de 2013, é ampliado em tamanho real e de uma maneira parasitária, acopla-se ao friso geométrico tão característico do estilo arte déco diluída de uma residência abandonada em Santa Maria – RS, acompanhando o processo efêmero e de ruína tanto de si, como da casa.

Elias Maroso parece dispor sob o olhar a experiência com a arquitetura hostil da vida urbana contemporânea ao esmiuçar tridimensionalmente em pequenos dispositivos espécies de arquiteturas engaioladas, elementos gradeados. Quando então diagrama, assemelhadamente em suas cismas, a irradiação das vias que conectam as diferentes partes de uma grande metrópole, dá espaço para suscitar um comentário sobre um centro iluminado, vigilante com sua luz e que irradia seu controle sobre a periferia. Embaralha as referências entre frente e fundo ao trazer para o espaço uma obra pensada materialmente cujos estágios de visualidade e invisualidade se alternam sem fim. Objetos gradeados que anunciam seu interior materialmente penetrável, objetos gravados pela luz que tem suas partes carcomidas cujo vazio se apresenta ao olhar, materiais afinados em seu perfilamento delicado. Materiais que nos propõe uma visão tecnologicamente diáfana de sua constituição, quando o artista engaja no objeto a resina e água, o acrílico cristalino, o vidro das pequenas lâmpadas, o branco que se acende nas placas iluminadas.

Finalmente, destaco o caráter incansavelmente rearticulado das unidades que compõem suas instalações. São unidades que transitam entre diferentes obras do artista e que, possuindo sentido intrínseco próprio, pelo processo de produção artística singular, doam para essas obras em que se hospedam não apenas sua contribuição material, mas seu saber próprio que rearticula o discurso imagético, não por um totalismo estanque da obra, mas por um texto interpenetrado sempre por fazer.  Essa constante remontagem de elementos de geografia e temporalidade díspares em alguma de suas obras, não só produz um processo de trânsito trans-imagético, mas também opera através do desvio. Neste processo, penetram o acaso, a ocasião, o caso, o azar no objeto que se forma em uma situação, parcializando-se numa colaboração provisória e profícua um pensamento que participa ativamente tanto do espaço estético e físico quanto se vê nutrido por um espaço como fenômeno de leitura crítica, em que deverá ser sublinhado seus percursos de trânsito, seus impulsos incidentes ou transcendentes, sua comunicação tímica, como também suas interdições ao corpo, suas potências represadas ao pensamento, suas verdadeiras ideologias de poder que tanto querem parecer tímidas e ocultas.

[Texto anexado à tese de doutorado em artes visuais de Elias Maroso, Circuitos de Entradas e de Saídas: por uma poética do atravessamento, 2021]



[1] Aqui os dois sentidos possíveis: sofrer como alvo e ser banhado em um processo que o desnaturaliza, que faz com que seja olhado de uma outra maneira, sempre inventiva e, portanto, não autoritária.

[2] Didi-Huberman, Georges. Ser crânio: lugar, contato, pensamento, escultura. Trad. Augustin de Tugny. Belo Horizonte: C/Arte, 2009.

[3] Pensumbrarpenso+obrarpenso+o+obrarpenso+um+obrar, neologismo. Esta palavra foi inventada para juntar em uma única unidade semântica a ideia concomitante de pensar – do latim pēnsāre: refletir, acionar a mente, criando ideias, pensamentos e de obrar – do latim operāre: agir, fazer, acionar a transformação material de maneira estética, poética e política. Há sub-repticiamente, ou seja, nas sombras dessa nova palavra-ideia, guardada no fonema /bra/ a redução presente na variante espanhola palabra, proveniente do desenvolvimento nas línguas latinas ibéricas a partir da palavra grega parabola. Finalmente, pensumbrar é também, por extensão, pensar uma nova palavra para refletir sobre um novo pensamento que se faz ao falar, narrar ou criticar uma obra-pensamento, uma pensumbra, muito presente na poética de Elias Maroso.

[4] Maroso, Elias. Diagrama com três cismas [portfólio online]. Porto Alegre, 2019. Disponível em: <https://www.eliasmaroso.art.br/p/ trescismas.html>. Acessado em: 22 fev. 2021.

[5] Maroso, Elias. Diagrama com três cismas, 2018, destaque do autor. Disponível em: <https://www. eliasmaroso.art.br/p/trescismas.html >. Acessado em: 22 fev. 2021.

[6] Maroso, Elias. Furo do olho, 2019. Disponível em: <https://www.eliasmaroso.art.br/p/furo-do-olho.html>. Acessado em: 24 fev. 2021.

[7] A subunidade semântica pensar presente em pensumbrar, significando acionar a mente, criando ideias, pensamentos, compartilha a mesma origem etimológica da palavra pesar, significando determinar o peso de algo ou alguém, verificar através de medição seu peso.

[8] Maroso, Elias. Você não está em um lugar só. Disponível em: <https://www.eliasmaroso.art.br/p/ voce-nao-esta.html>. Acessado em: 27 fev. 2021.

[9] Curti, Hugo. Seres abissais sobrevivem, 2014. Disponível em: < http://www.hugocurti.com.br/seres-abissais-sobrevivem/>. Acessado em: 20 fev. 2021.

[10] Curti, Hugo. Op. cit.

[11] Curti, Hugo. Seres abissais sobrevivem. In: VILLA, Danillo [org.]. Arte Londrina 3. Londrina: DaP, 2015. Disponível em: <https://issuu.com/daplondrina/docs/cat__logo_-_arte_londrina_3>. Acessado em: 19 fev. 2021.

[12] Entrevista de Giuseppe Penone à Marina Câmara e João Guilherme Dayrell. In: Camara, Marina; Dayrell, João Guilherme. Entrevista com Giuseppe Penone. Revista Arts, São Paulo, n. 15, v. 29. p. 40. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/123858/127928>. Acessado em: 18 fev. 2021.

[13] Marquéz-Elul, Fercho. Leviatã: O boato como elemento intersticial entre objeto e sujeito. Revista PHILIA | Filosofia, Literatura & Arte, Porto Alegre, vol. 1, n. 2, p. 213-214, out. 2019. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/philia/article/view/93065/54558>. Acessado em: 18 fev. 2021.

[14] Maroso, Elias. Coisa curva e vai, 2017. Disponível em: <https://www.eliasmaroso.art.br/p/ coisacurva.html>. Acessado em: 27 fev. 2021.

[15] Deiscer-se aqui ensaiando o significado de “abrir-se para fora, armar uma abertura para fora”, tem sua forma pronominal recuperada propositalmente do verbo latino dĕhīscō, dĕhĭscere, significando “abrir-se, fender-se”, como também “bocejar, abrir a boca”. Este verbo é formado pelo prefixo de com o verbo hĭscere que por sua vez guarda o significado de “abrir muito a boca, a porta” e também “vomitar, regurgitar”. Para nossa língua corrente, sobreviveu a palavra hiātus “hiato, abertura” provinda da forma hio “eu abro”- primeira pessoa do singular do presente do indicativo e que por sua vez, dá nome ao verbo em questão e o sufixo -scō, -scere transforma verbos de estado em verbos incoativos, passando a dar sentido de processo de início de uma ação, de “começar a”. Conservam-se ainda hoje os vocábulos deiscência, descrevendo, na medicina, o processo de abertura ou rompimento de uma sutura, inflamação, ferida, etc. e na biologia, o processo de abertura de diversos órgãos vegetais, quando atingem a maturação, expondo suas sementes, por exemplo, e, finalmente, deiscente: aquilo que sofre este mesmo processo.

[16] Ayres, Ricardo. Abaixo. Pelotas: Museu da Bibliotheca Pública Pelotense, 2017. Folheto de exposição.

[17] Ayres, Ricardo, op. cit., 2017.



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